terça-feira, 20 de março de 2018

Em luto, lutamos

Quando ela nasceu disseram que ela era bonitinha, apesar do cabelo. Ela não entendeu. Tinha o cabelo igual ao de quase todo mundo que morava por ali, por que o cabelo seria feio? Contrariando muitos conselhos, preferiu não alisar os cabelos. Deixou os cachos, tingiu, prendeu, armou. Não achava seus cabelos feios.

Quando ela fez 11 anos disseram que era melhor parar de estudar e começar a trabalhar. Ela também não entendeu. Conhecia um monte de gente que havia parado de estudar para trabalhar. Estavam todos trabalhando há anos. Trabalho pesado, todos os dias, o dia inteiro. Ela não parou de estudar. Arrumou um trabalho e batalhou para não largar os estudos.

Quando ela engravidou, aos 19 anos, disseram que precisava casar. Mãe solteira era mal falada, não conseguiria criar a filha. Era melhor cuidar do marido e deixar os sonhos de lado. Ela não deu ouvidos. Teve a filha e no mesmo ano começou a estudar para o vestibular.

Quando ela começou a namorar uma mulher disseram que ela era uma sem vergonha, vagabunda, puta, que daria mau exemplo para a filha pequena. Ela, que sempre aguentou as provocações sozinha, não se renderia agora que tinha uma companhia.

Quando ela passou no vestibular da universidade particular, disseram que ela deveria desistir. Isso era coisa de rico e ela não conseguiria pagar o curso até o fim, ainda mais ciências sociais, que ninguém sabia o que era e ninguém dava emprego. Pois ela arrumou uma bolsa de estudos, através do tal do Prouni.

Quando ela se formou acharam que finalmente havia terminado. Agora ela encontraria um emprego e seguiria o destino que haviam imposto desde que ela nasceu. Mas ela começou a fazer mestrado em uma Universidade Federal.

Quando ela entrou para a política disseram que seria mais uma a mamar nas tetas do governo, desviar dinheiro e enriquecer sem fazer nada. Mas ela foi assessora parlamentar por dez anos, construindo um trabalho competente ao ponto de ser eleita vereadora com 46 mil votos.

Quando ela entrou na Câmara como a quinta vereadora mais votada, muitos torceram o nariz. Mal sabiam quem era aquela mulher, negra, lésbica, favelada e detentora de tantos outros adjetivos que ela ostentava com orgulho quando utilizavam para ofendê-la.

Quando ela, com apenas dois anos de mandato, mostrou ser mais competente e atuante do que muitos poderiam imaginar, ela foi ameaçada. Não deu ouvidos. Havia passado 38 anos de sua vida sendo ameaçada de tantas formas, não seria agora que conseguiriam calar sua voz.

Quando ela foi assassinada, acharam que finalmente ela se calaria. Acreditaram mesmo que haviam silenciado aquela voz destoante, que haviam colocado aquela atrevida em seu devido lugar.

Quando ela foi sepultada surgiu um grito. Menos de dor que de revolta. Um grito que finalmente ecoou pelo país inteiro. Que rompeu fronteiras e chamou a atenção do mundo. A luta, que muitos acreditaram estar acabada, estava apenas começando. Sua voz ganhou força, ganhou apoio, ganhou respeito.

Quando ela virou símbolo de luta dos oprimidos, tentaram, covardemente, sujar sua imagem. Não pouparam esforços. Na ausência de argumentos, inventaram as mais criativas barbaridades. Foram desmentidos.

Quando ela morreu não se calou, não desistiu, não sumiu. Está, mais do que nunca, presente.



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