segunda-feira, 27 de março de 2017

Vendedor de chocolate

Estava em pé, olhando pela janela e pensando no futuro. Não sei se ter consciência de que o problema não é exclusivamente meu torna as coisas mais suportáveis... Tá todo mundo na merda. Todo mundo não, 1% da população mundial passa muito bem, obrigada. Para todo o restante, a constante ameaça contra sua dignidade.

Várias vozes ocupavam o ar pesado de angústia e fumaça do trem. Confusão. Eu quase não podia compreender o que falavam. Contudo, uma voz masculina se destacou das demais: ela era particularmente bonita e agradável. A voz anunciava chocolate a dois reais em meio a piadas originais que roubavam o riso tímido dos passageiros.  Por um instante abandonei a paisagem cinza da janela para voltar o olhar pra dentro do vagão. Descobri o dono da voz bonita, era um jovem descolado, com brinco alargador, tatuagem, boné. Saciada minha curiosidade, retornei à introspecção, mas por pouco tempo, já que o moço insistia em roubar minha atenção: seus slogans brincalhões se converteram em crítica à mensagem sonora da CPTM que dizia ser ilegal o comércio ambulante.  “Trabalhar é errado? Vocês acham que estou cometendo crime”? Os passageiros concordavam silenciosamente com ele.

Enquanto defendia a dignidade do próprio trabalho e de seus colegas, o vendedor de chocolate, muito bem articulado, fez uma contraposição entre sua honestidade e a dos políticos corruptos. “Querem ver roubalheira? Basta ligar a televisão e ver o que se passa em Brasília”. Ao que mais e mais passageiros concordavam com o vendedor, agora não mais silenciosamente, eles resmungavam baixinho.

A voz bonita ganhou um tom entusiasmado de discurso político. Como num suave de mix de balada, quando as musicas acabam e começam sem a gente perceber, o moço mudou o foco de sua crítica política para as igrejas evangélicas. “As igrejas estão se perdendo na ganância, hoje em dia ninguém mais ama o próximo”, ele dizia cada vez mais alto, enquanto citava versículos bíblicos. Eu podia ouvir “sim, sim!” igualmente entusiasmado dos passageiros. Foi então que no auge o moço perguntou: “Eu posso ouvir um amém”? E todo mundo ao meu redor respondeu “amém!”.

Aquilo tudo me causou uma espécie de vertigem, parecia que acordara de um sonho lúcido. A voz do locutor da CPTM anunciou a chegada à estação final, “o trem não presta mais serviços, favor desembarcar”. Um passageiro que estava sentado no chão se levantou e empurrou violentamente o vendedor de chocolates. Todo mundo ao redor ficou atento e esperando intimamente que os dois partissem para um combate físico, mas quando o trem abriu as portas, cada um simplesmente caminhou em direções opostas pela plataforma.

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