sábado, 7 de maio de 2016

T r a v e s s i a

Acordou as três da manhã com uma dor insuportável no braço. Ao despertar, teve consciência de que a dor física havia invadido o sono. Lembrou-se do sonho de minutos antes. Parecia que estava inserida na pintura de uma tela devido a intensidade das cores. O cenário era um aglomerado de pequenas grandes referências que foi acumulando em seus anos de travessia: verdes gramados da Mantiqueira, árvores retorcidas do cerrado, maritacas conversando quando o sol aponta e desponta lá no meio do céu, o marcante cheiro de bosta de vaca no capim seco. Passeava pelo pomar e provava de mexericas e pitangas suculentas. Uma serpente saiu dos entremeados das árvores e, diferente da passagem bíblica, não lhe incitou comer a maçã, afinal, todas as frutas ali já haviam sido provadas. 

A dor foi intensa e o braço ganhou uma coloração avermelhada. Logo após a picada, a cobra deslizou até o chão e rodeou seu pé, até morder a própria cauda. Oroboro. já havia visto aquele símbolo em algum lugar. Ao sair dos devaneios, acendeu a luz para examinar o que havia ocorrido em seu braço: uma torção ou picada de "pórvas" - afinal, ali não havia cobras, não devia ser grande coisa. Não conseguiu identificar o que poderia ser protagonista da sua dor. A vermelhidão foi se roseando, até quase não deixar vestígios.

Depois de uma semana de sonos sem sonhos, acordou de madrugada novamente, com o braço latejando de dor. Além da vermelhidão ela viu formar em seus braços pequenas teias pretas. Naquele momento não podia fazer mais nada além de se acalmar e esperar um horário apropriado para buscar um médico. Não conseguiu voltar a dormir. Pegou um livro na estante e travou duelos sangrentos entre a leitura e a mente que custou a se concentrar. Leu dez, vinte, cinquenta páginas. Imersa no enredo não percebeu que as teias pretas haviam aumentado e esboçado uma sequência de letras. 
Sessenta, oitenta, cento e vinte páginas. O braço continuava a latejar mas ela havia se proposto a não olhar mais, esperar o dia amanhecer. Cento e trinta, cento e cinquenta, cento e setenta páginas. 

Os vestígios coloridos do dia invadiram o quarto. Fechou o livro e foi se aprontar para a visita ao médico. Ao olhar seu braço, as pequenas teias de antes haviam adquirido contorno e desenhado formas. Lembrou-se do sonho da semana anterior. Foi até a estante e buscou no dicionário a palavra "oroboro". Ciclos, vida e morte, infinito, o sem começo nem fim. Ao terminar de ler, como em um passe de mágica, a dor parou. Ao olhar novamente o braço o que viu não foram mais teias, mas a t r a v e s s i a eternizada.

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