quinta-feira, 17 de março de 2016

Quando ouvi a cidade de noite batendo as panelas, eu pensei em Maria

Maria é minha aluna do curso de alfabetização. É empregada doméstica, negra, dorme na casa dos patrões, moradores de Higienópolis, um dos bairros nobres de São Paulo. Aquele onde teve protestos contra a construção de um metrô, porque ia atrair "gente diferenciada". Os patrões de Maria vão frequentemente para o exterior. Sei disso porque no final do ano, ela me deu de presente um lenço da Itália. Disse que a patroa sempre ia e da última vez trouxe dois para ela. Maria me deu um porque queria me agradecer pelo fato de eu ter a ajudado a comprar o presente de amigo secreto. Eu recusei o lenço, ela insistiu.
Dias antes desse, na minha aula, passaram a lista de quem queria participar do amigo secreto e Maria não queria. Como era a única que recusou, perguntei novamente e, acho que por vergonha, aceitou. Depois me disse sem jeito que não tinha dinheiro, que tiraria da poupança. Eu corri atrás dela, eu também envergonhada por não ter entendido antes, e dei 20 reais na carteira. Não me achei o máximo por isso, queria só que ela comprasse o presente e que esquecesse. Maria não esqueceu. Na festa de confraternização levou o presente de amigo oculto. E o presente da patroa dela. Pra mim.
Nossa aula é das 19 às 21h. Maria sempre está se desculpando. Ou porque faltou a aula passada, ou porque não poderá ir na próxima, ou porque chegou atrasada, ou porque está cansada. Sempre precisa trabalhar. Os patrões têm muitos jantares, muitas visitas, muitas taças de cristal para lavar e enxugar. “Desculpe, professora, mas sabe como é, teve jantar”. Maria pede desculpas por ficar sem estudar.
Hoje, a caminho da escola, fui acompanhada pelo barulho. Começou com um zunido, crescendo forte, compassado. As varandas gourmets todas batiam suas panelas. As janelas gritavam, em ritmo de revolta. Pensei em Maria. Não era clima para um jantar. Na aula falei sobre poema, expliquei o que era “ritmado”. E ao bater na mesa para tentar exemplificar, ninguém associou com as batidas lá de fora. Ninguém falou de Maria, diferenciada, que hoje faltou. Maria, que às vezes escrevia uma palavra que não sabia e se surpreendia porque não tinha errado, hoje não escreveu, não soube desse ritmo. Maria deve ter feito hora extra, “desculpe professora, mas é que as panelas...”

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