terça-feira, 22 de março de 2016

O homem do conserto

No inicio era a cor. Depois só ficou o branco. 

O branco das paredes. O branco dos azulejos. O branco dos lençóis que repousavam sobre leitos brancos. O terrivelmente branco da palidez do avô. O branco do teto, o branco das louças, o branco do ar e o branco imaculado do avental do homem do conserto. Aos olhos do neto, o avô sempre fora inquebrantável, uma fortaleza, um gigante. Ao menos até o dia em que tudo ficara branco.

A partir daquele dia o avô passara a ter uma existência horizontal. Uma existência ligada a fios, tubos e botões. E sobretudo uma existência assistida pelo homem do conserto - não era assim que o avô sempre se referia aquele homem? Ao homem que vinha para lhe conectar novamente ao mundo? Teria aquele homem poder para tanto?

Já fazia um tempo que o neto percebera que o avô vinha mudando. Os passeios foram rareando e, nos últimos tempos, deixaram de existir. A risada espalhafatosa virara um sorriso melancólico, de quem parecia querer mais chorar do que rir. As visitas ao homem do conserto passaram a ser cada vez mais frequentes. 

O neto não entendia bem o que aquele homem consertava. O avô nunca tinha permitido que o neto o acompanhasse. Sempre dizia que o homem do conserto não gostava de crianças. O fato é que o avô invariavelmente voltava com um saquinho cheio de pequenas cápsulas (balas e caramelos? Por que diabos o avô esconderia balas e caramelos dele?) e depois de alguns dias parecia mesmo que retornava a ser o que era.

Daquela vez a visita estava demorando demais. O neto ia visitar o avô naquele universo branco e quase não o reconhecia. Seria ainda o seu avô que estava ali? Um homem aparecia de tempos em tempos e, através de curiosos penduricalhos, parecia entrar em contato com o avô. A mãe, sempre sua companheira nas visitas ao mundo branco, lhe disse que aquele era o homem do conserto. Era incrível! Bastava o homem do conserto vir para que tudo naquela sala branca se transformasse, exceto, é claro, a branquitude. Esta só aumentava.

         Aumentou tanto que, passados alguns dias (ou seriam meses?) o neto passara a ver tudo como uma grande névoa, mal distinguindo uma coisa da outra. Era tudo uma sufocante massa branca. E no meio de tudo isso, seu avô, ou aquele que diziam ser seu avô. 

Não havia relógio e tampouco chegava ali a luz do dia. O tempo era marcado pelas visitas do homem do conserto. Pela manhã – e invariavelmente despertando o neto - o homem do conserto chegava, manuseava com esmero seus penduricalhos, trocava meia dúzia de palavras com a mãe e ia embora. Vinha uma segunda vez anunciando a tarde e uma terceira vez trazendo consigo a aurora. Sempre realizava os mesmos procedimentos e nunca dirigiu uma palavra ao neto. O avô devia ter razão. O homem do conserto não gostava de crianças. 

Até que numa noite, depois de incontáveis noites, todas elas dormidas ao lado do avô, o neto foi invadido por pesadelos. Ouvia barulhos de gente, de móveis se arrastando, de vozes (seria a do homem do conserto?), mas não sabia dizer se vinha do sonho ou do mundo branco. Tudo se confundia. Acordou sobressaltado. Divisou sua mãe sentada ao seu lado, olhando ternamente para ele, enquanto o acariciava. O avô estava no leito. (O avô estava no leito?).

Branco.

Faltava alguém. O neto sempre acordava quando ele chegava. Dirigiu-se a mãe:

            - O homem do conserto não vem?
            - Não, querido, não vem. Não há mais o que ser consertado...

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