segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Funk ostentação


No final de semana passado, quase ninguém que mora na minha rua pôde dormir. Até às 4 da manhã, dois carros com som potente (as janelas estremeciam pela vibração) estiveram ligados por umas 8 horas ininterruptas.  A altura do som estava num nível insuportável (pelo menos pra mim), de total perturbação, que abre as portas do inferno que existe dentro da gente. 

Não apenas no meu bairro, mas em diversos pontos da periferia da cidade de SP se realizam os chamados “fluxos” (desconfio que o nome “baile funk” só é usado no RJ), geralmente aos finais de semana, mas não necessariamente. Já vai completar dois anos que ocorrem esses eventos na rua onde moro. Todos os finais de semana eles estão aqui. TODOS. Sinto falta do silêncio e da paz, de poder curtir um lazer tranquilo na minha casa...

Desde que o funk chegou a São Paulo, vindo do Rio de Janeiro, ele abarcou (não apenas, claro) uma boa parcela da juventude pobre e se tornou mais do uma curtição musical, ele é um estilo de vida. Sei que há diversidade dentro do movimento, mas o que ouço no “fluxo” são apenas músicas do tal “funk ostentação”. Basicamente, seguindo a batida forte, jovens e até crianças narram experiências sexuais e ostentam o poder econômico.

Eu sofro vários conflitos a respeito dessa situação, porque sou a favor da ocupação dos espaços públicos, de manifestações culturais e não acredito na resolução de conflitos pela violência. No entanto, ser privada do sono noturno e do descanso do caos da cidade faz a razão ceder lugar às emoções mais do que eu gostaria...

Não sou nenhuma estudiosa do assunto nem nada assim, mas uma possível interpretação desse movimento é que ele revela uma autoafirmação. Se os pais e avós abaixavam a cabeça e entendiam “qual o lugar deles”, esses jovens querem ser reconhecidos pelas cartas do jogo; afinal, não se é “vencedor” quem pode consumir certas marcas e produtos? Seja fruto da imaginação, endividamento de seus pais, etc, não importa: eles vão reescrever suas histórias a partir de um ponto de vista vencedor. Inegável que as músicas ficarão registradas pra posteridade.

Em geral, mudanças sociais começam por uma alteração subjetiva. Colocar-se como sujeito com poder, ainda que objetivamente possa não ser, é um avanço. Contudo, falta o passo seguinte... falta destruir esse jogo imundo e construir outro, não querer ganhar com as regras dadas. Porque esse jogo está com os dias contados, seja pelo fim do capitalismo, seja pelas condições ambientais que põem em risco o Planeta habitável.

3 comentários:

  1. Som alto. Seja ele qualquer.
    Vontades ruins passam pela minha cabeça.
    Apenas.

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  2. Felipe Lários (dia 22)1 de novembro de 2014 às 13:12

    Sirley, seu texto toca em dois temas que dariam bons estudos socio-antropológicos que me instigam bastante: "A ocupação do espaço público nas grandes cidades e sua viabilidade" e, o que me incomoda mais, "A apropriação pelo oprimido de valores do opressor". Muito bom!

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  3. Nossa, gostei muito.
    O "fluxo" ocorre na minha rua tb, todos os domingos, porém, durante a tarde.
    Uma parte de mim diz "chama a policia"e a outra diz "se eu fosse solteiro com 16 anos, eu acharia ruim?"
    Dentro de meu conflito, tenho escolhido fechar as janelas, aumentar a TV.

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