sexta-feira, 22 de agosto de 2014

A greve e os dias

Todas as manhãs pai e filha iam juntos à repartição. 

O pai em questão era um funcionário dedicado, cumpridor de horários e boa praça. A filha em questão tinha recém completado seu primeiro aniversário e acabara de ingressar à creche da repartição. Nada mais conveniente. O pai deixava a pequena menina na creche e seguia tranquilo para seu posto de trabalho, onde cumpria zelosamente às suas atividades em prol do bem público. Por mais trivial que este trâmite cotidiano possa parecer, esta rotina tinha aproximado pai e filha. A pequena ainda estava ensaiando seus primeiros passos, então o pai a levava agarrada ao corpo, numa dessas curiosas invenções humanas que se apropriam da engenhosa anatomia marsupial. 

Faziam a  maior parte do caminho a pé ("faziam" é modo dizer, já que era somente o pai quem efetivamente caminhava) uma vez que a repartição ficava num desses pequenos oásis da urbe onde ainda existem árvores - considerável parte delas frutíferas - e animais de boa índole em quem se pode confiar. A menina, a despeito do mau humor e rabugice que uma caminhada matutina possa sugerir para alguns, espalhava sua simpatia infantil manifestada por um sorriso ainda banguela e por um insistente e terno chacoalhar de mãos, para todo aquele ou aquela que cruzasse seu caminho (e quando digo "todo" estou sendo literal, já que a menina não fazia qualquer tipo de distinção e cumprimentava até os menos cumprimentáveis, arrancando sorrisos até de pessoas que aparentemente não tinham este hábito e que o praticavam  pela primeira vez em séculos). 

Eram tempos bons e aprazíveis, mas um espectro rondava a repartição. Em todo corredor se falava da iminência da greve. A administração da repartição mudara de mãos nos últimos meses e muitos concordavam que a mudança não era algo que se pudesse chamar de boa. O novo dirigente era, em verdade, um velho conhecido de todos. O senhor de cabelos brancos e olhar afável tinha ocupado um cargo importante na gestão que o precedeu e, como a lógica nos induz a supor, conhecia de antemão os problemas que a instituição padecia e estava preparado para enfrentá-los. A realidade, no entanto, nem sempre é lógica, sobretudo quando estamos tratando de aspectos políticos da realidade. Ao assumir o posto de comando da repartição, o dirigente continuou com cabelos brancos mas tornou o olhar menos afável. Negou a gestão anterior como Pedro negou a Cristo, com a diferença de que o fez bem mais do que três vezes. Sua gestão - gabava-se - serviria para tirar a repartição da lama a qual a gestão anterior a tinha lançado e, como primeira medida, teve a brilhante ideia de congelar o salário de todos os funcionários, a despeito do processo inflacionário ditado por nossa Economia.

Tal como fogo num pavio, a noticia do congelamento salarial foi se alastrando por todos os cantos da repartição. "Mais valia não ter me esforçado tanto" - dizia um - "mais valia ter ficado em casa" - afirmava outro - "mais valia era ter mandado este desditoso senhor congelar o salário da boa senhora que o concebeu" - vociferava um escriturário um pouco mais exaltado - "mais vale entrarmos em greve!" - decidiu a Maioria - esta senhora sempre tão democrática - em assembleia. E a greve se iniciou. No dia seguinte ninguém trabalhou.

Nem mesmo o pai, que como já se disse e é sempre bom que se repita, era um funcionário dedicado, cumpridor de horários e boa praça. Mas não era trouxa. Agora, ele também era grevista. Aqueles que cuidavam da menina enquanto o pai trabalhava não eram menos dedicados, tampouco deixavam de ser cumpridores de seus horários e também eram - por que não? - boas praças, mas, assim como o pai da menina, também não eram trouxas. Agora, eles também eram grevistas. O pai e a menina continuariam a ir todos os dias à repartição, só que agora como legítimos militantes da classe trabalhadora!

As idas à creche cederam lugar às idas às assembleias. O destino mudou, mas a simpatia da menina continuava a mesma. Seu público, no entanto, se ampliou bastante. Agora, a menina brincava entre os mais variados tipos e já não usava suas mãozinhas apenas para dar tchau aos passantes, mas também para bater palminhas sempre que algum companheiro da classe trabalhadora se inflamava ao microfone. Foi numa dessas ocasiões, inclusive, que a menina pronunciou sua primeira palavra: "precarização", para grande surpresa de todos que estavam ao redor.

A greve e a menina pareciam ter sido feitos um para o outro. O pai, que no incio estava receoso, foi logo ficando mais relaxado e permitindo que a menina transitasse livremente entre a massa de grevistas. Ela ia de colo em colo e recebia o mimo de todos. De um ganhou uma bandeira vermelha a qual aprendera a manusear com maestria, de outro ganhou um apito que utilizava sempre nos momentos em que a massa se exaltava. Era o mascote da greve.

Com o tempo a menina foi percebendo que seu vocabulário era modesto demais para que pudesse participar plenamente daqueles importantes acontecimentos, por isso, tratou logo de ampliá-lo. "Sucateamento", "neoliberalismo" e "repressão" vieram logo na primeira quinzena da greve. "Liberdade", "reacionário" e "pelego" vieram na sequência. Os verbos, conjunções e preposições necessários para unir tudo isso foram vindo com o tempo. Ao fim do segundo mês de greve, a menina já se comunicava com eloquência e já podia dialogar de igual pra igual com qualquer sindicalista das antigas.

Quem não queria saber de dialogar com ninguém era o dirigente da repartição. Para ele, a greve não fazia nem cosquinhas e ele seguia declarando para a imprensa que não aumentaria um tostão furado o salário de ninguém! E era bom que parassem de brincar de greve e voltassem logo ao tronco porque, do contrário, não receberiam nem o pouco a que tinham direito!

Tamanha intransigência e inabilidade administrativa serviriam para desanimar qualquer pessoa de ideias frouxos, mas este não era o caso. A greve continuava ainda mais forte. "Não tem arrego! Não tem arrego", gritavam todos. "Arrego", foi logo incorporado ao já sofisticado vocabulário da menina.

Ao término do sétimo mês de greve, a menina completou toda sua dentição (com exceção, é claro, dos chamados "dentes do siso", ainda que juízo não fosse algo que faltasse à menina"), motivo pela qual abandonou completamente sua dieta composta essencialmente de alimentos pastosos e de fácil deglutição e passou a ingerir, sem medo, alimentos mais consistentes. A noticia foi recebida com alegria por todos, que agora poderiam oferecer-lhe toda a sorte de sanduíches e outras guloseimas que o sindicato disponibilizava em todas as assembleias, os chamados X-Greve. Não tem arrego! Não tem arrego!

Com o irrestrito apoio do governador do estado, o dirigente da repartição começou a endurecer as coisas. As prisões, episódios apenas pontuais no inicio da greve, transformaram-se em acontecimentos rotineiros. A policia estava autorizada a prender por qualquer motivo e até mesmo por motivo nenhum, caso o policial não fosse com a cara do suposto meliante. O movimento grevista teve que se fortalecer para a libertação dos presos políticos. A massa grevista tomou as ruas e foi pedir apoio da população. "Não tem arrego! Não tem arrego", diziam os cartazes. "Não tem arrego! Não tem arrego", gritavam os grevistas.

A repartição deixara  há tempos de manter suas atividades mínimas e agora estava às mínguas. A greve se radicalizara depois de 7 anos de infrutíferas tentativas de diálogo e o novo dirigente, escolhido pelo governador do estado, seguia a mesma linha intransigente de seu antecessor. A situação estava até confortável para ele já que a repartição estava economizando bastante com a interrupção geral dos serviços.

O pai e a menina, é fundamental que se diga, mantinham-se firmes na luta. A menina, que completara toda sua alfabetização criando os cartazes utilizados nas manifestações, tratara de ampliar de uma vez por todas seu universo cultural e substituíra, por conta própria, o seu acervo literário. Os livros coloridos de autores como Monteiro Lobato, Ziraldo e Tatiana Berlinky cederam lugar a obras de maior densidade e intenso conteúdo político: Bakunin, Proudhon, Thoreau, Lenin e outros. Como presente de aniversário de 10 anos, a menina pedira de presente a seu pai uma coleção dos escritos de Marx e Engels e organizou um grupo de estudos entre os grevistas. O pai passou a não acompanhar mais o raciocino da filha - eram poucos que conseguiam - mas sempre a apoiava em tudo.

Foi quando apareceu uma ponta de esperança. Após 17 anos de tentativas frustradas de diálogo com a direção da repartição, um dirigente enfim apareceu em uma reunião de negociação. Sua proposta era a de que todos os presos políticos seriam soltos imediatamente, com a condição de que todos os grevistas voltassem aos seus postos de trabalho na manhã seguinte. Aquilo era golpe baixo! A luta não poderia acabar daquela maneira. "Não tem arrego! Não tem arrego!" - foi a resposta de todos em assembleia.

A greve só crescia e agora contava com o apoio dos filhos dos grevistas que iniciaram a greve. A menina tinha o cuidado de introduzir estas crianças nos estudos revolucionários e organizava rodas de leituras dos clássicos da desobediência civil. Já não eram grevistas. Eram uma comunidade. Muitos abandonaram sua antiga família e passaram a viver definitivamente nos acampamentos montados nos jardins da repartição. Antropólogos e jornalistas do mundo começaram a se interessar por aquela nova forma de viver e passaram a ser figuras constantes no local. O enterro do principal líder sindical, no inicio da terceira década de luta, foi noticia em jornais do mundo todo, que destacavam o curioso conteúdo de seu epitáfio: "Não tem arrego! Não tem arrego".

O pai da menina já não se lembrava mais porque a greve tinha começado mas, mesmo já tendo se aposentado, continuava acompanhando a filha às manifestações. A menina era agora uma mulher que já entrava nos quarenta e tinha sido eleita por ampla maioria de votos a nova presidenta do sindicato. Agora ela era a voz da greve, a líder sindical, aquela que levaria todos à iminente vitória! "Não tem arrego! Não tem arrego!" - disse ela em seu inflamado discurso de posse.

No dia seguinte, pai e filha iriam juntos à repartição...

12 comentários:

  1. \o/ \o/ \o/ \o/ O \o/ \o/ \o/ POVO \o/ \o/ \o/ UNIDO \o/ \o/ \o/ É \o/ \o/ \o/ GENTE \o/ \o/ \o/ PRA \o/ \o/ \o/ CARAMBA!

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  2. Ia elegê-lo como, de longe, o seu melhor texto, mas achei que seria injusto com o conjunto da obra... Que ainda não li por inteiro... Ai, ai...

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    1. ô loco, vc começou a ler meia noite e só terminou meia noite e trinta e dois? Acho que desta vez exagerei mesmo! Muito obrigado pelas palavras lisonjeiras, mas trate de ler toda minha extensa obra! Rsrs...

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  3. O que mais me impressiona na greve ainda são os obstinados por chegarem ao trabalho a qualquer custo. Daí a gente precisa de algum tipo de serviço desse pessoal e eles ficam enrolando...

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    1. Vergonha desse tipinho de gente, Alexandre. A menina os abomina!

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    2. Em tempo: mas vergonha alheia mesmo oram certos alunos que organizaram o "estudaço" em oposição ao "cadeiraço"... aff!

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  4. Kkkkkkkkk
    Adorei, Fefe!
    A história incrível, o tempo passando, e todos os seus curiosos detalhes, como os animais de boa índole, os trabalhadores boa praça, sem falar da primeira palavra da menina... demais!
    Vale lembrar que qualquer semelhança com fatos reais não é mera coincidência ;)

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    1. Ah, você é uma japa muito boa praça e de boa índole! :) Valeu!

      Pois é, não tem nada de coincidência... Julinha que o diga!

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  5. Muito bom Larios, a tempos não comentava nada (fato que alguns estavam adorando rsss), mas achei que este texto merecia aplausos. Cuidado, seu eu voltar a comentar todos os dias, não vai ter arrego.

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  6. É isso ae, Risa! O mundo sente a falta de seus comentários desmotivantes! Não tem arrego!

    Abraço!

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  7. hahahaha! Demais, Felipe!! Fiquei imaginando certa menininha dizendo "precarização", hahahah! Adorei também a estrutura do texto, parecendo um conto de fadas, rs

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