domingo, 22 de setembro de 2013

Barbosa

O que é um epitáfio senão uma epígrafe do que virá depois?
(Emiliano Barbosa)

Barbosa chegou cedo à repartição. 

Estava esbaforido, mas feliz. Conseguira se lembrar da capital de todos os países da América Central durante o percurso que fazia, a pé, de sua casa até a repartição. Aqueles exercícios mentais eram uma constante no cotidiano de Barbosa, que não sossegava enquanto não os cumpria. Este último já o atormentava há mais de uma semana! Quando se lembrava de Manágua, era Tegucigalpa que lhe faltava. Quando lembrava dos dois, era San José que lhe fugia. Mas nesta manhã se lembrara de todos! Um dia que começa assim é certamente um dia auspicioso: tudo pode acontecer num dia em que somos capazes de nos lembrar de todas as capitais da América Central.

Segurando o café em uma mão e o jornal na outra, Barbosa foi caminhando até a seção onde trabalhava, na penúltima sala do corredor. Barbosa sentou em frente de sua mesa e, como ainda tinha uns bons quarenta minutos antes de seus colegas chegarem, abriu o periódico diretamente na página das palavras-cruzadas, seu outro exercício mental diário. Gostava de começar pelas menores e ir progressivamente em direção às maiores, técnica esta que rendeu a Barbosa mais um feito inédito naquela alvissareira manhã: entre a singela sigla de post scriptum (PS, ao que me consta) e o improvável sinônimo brasileiro para pic nic (convescote, como pude verificar depois) passaram-se apenas 6 minutos e 32 segundos, um verdadeiro recorde (palavra paroxítona, conforme Barbosa sempre fazia questão de deixar claro) para aquele mês de Setembro que já se aproximava bastante do fim. 

Somente quem já sentiu o gozo de completar uma cartela de palavras-cruzadas poderá entender o estado de ânimo que Barbosa estava quando finalmente colocou o periódico de lado, estalou os dedos e ligou o computador. A tela logo se iluminou e Barbosa aos poucos foi sendo apresentado às demandas do dia: redigir relatórios, memorandos, atas e pareceres. Foi quando um email lhe chamou a atenção. Era uma Circular Interna, assinada pela diretoria da repartição, que convidava a todos os funcionários a se inscrevem num evento intitulado "I Desafio de Redação Burocrática".

O curioso evento fora ideia do novo diretor da repartição que, cansado de encontrar tantos erros de ortografia e concordância nas atas e pareceres, promovia a competição com vistas a incentivar um maior cuidado com o idioma por parte dos funcionários. O prêmio era nada mais, nada menos, que uma progressão vertical na carreira burocrática, fator que pretendia motivar todos os funcionários.

Barbosa era amante das palavras e dos exercícios mentais, por isso imediatamente fez sua inscrição no evento. O que pode parecer algo aborrecido para muitos, era fonte de grande prazer para Barbosa. Ele se deleitava ante a oportunidade de produzir aqueles documentos, de fazer uso das palavras a favor da burocracia estatal, de transformar meras informações enfadonhas em verdadeiros exemplares do que chamava de literatura processual. 

Enquanto seus colegas se contentavam com meros "deste modo", Barbosa não escrevia nada menos elegante do que "destarte" ou "outrossim". Gostava de trabalhar as palavras, aparar as arestas, lapidar cada virgula. Suas atas, memorandos e pareceres eram sempre elogiados pela chefia e por seus colegas de repartição. Até mesmo as línguas mais caluniosas reconheciam seu talento. Barbosa era muito querido.

Barbosa se distraiu diante do monitor e nem percebeu que já não estava sozinho. Seus colegas foram chegando aos poucos e, paulatinamente, todos iam se informando do famigerado "I Desafio de Redação Burocrática". Não se falava em outra coisa na repartição. O futebol, assunto que prevalecia na copa e no refeitório, dera lugar a questões de ortografia e retórica. Até mesmo aqueles que jamais se preocupavam em produzir textos elegantes, eram vistos pelos corredores carregando livros de gramática e discutindo acerca da pertinência de certos adjetivos. O novo diretor via aquilo com grande satisfação. Seu objetivo, aparentemente, havia sido alcançado. Com a esperança de serem premiados com uma promoção vertical na carreira burocrática, os funcionários estavam se esforçando para tirar o atraso de anos de total desleixo comunicativo para tornarem-se, em poucos dias, verdadeiros literatos processuais.


Os dias foram passando e as discussões acerca do grande evento ia só se acalorando. O nome de Barbosa logo ia surgindo como o grande favorito para a competição, mas nada que prejudicasse sua concentração. Para Barbosa era apenas mais uma oportunidade para praticar uma atividade que lhe dava grande prazer. A única diferença é que desta vez seu passatempo mental tinha ganho status de atividade séria e seu talento poderia, afinal, ser reconhecido. Finalmente chegara a hora e a vez de Emiliano Barbosa.

Barbosa, no entanto, jamais participaria do "I Desafio de Redação Burocrática". Fora encontrado morto em sua casa na noite anterior ao evento. Uma pena. Realmente uma triste fatalidade que até hoje não foi explicada. O evento, entretanto, ocorreu sem traumas e teve como grande vencedor alguém conhecido na repartição por suas capacidades comunicativas: o presidente do sindicato dos funcionários, até então mais conhecido por sua voz nos auto-falantes do que, propriamente, por suas habilidades gramaticais. O diretor parabenizava o funcionário vencedor e exaltava o caráter democrático de todo o processo.

As poucas pessoas que foram ao velório de Barbosa puderam ler em seu epitáfio: "Há várias maneiras de matar um homem. Aqui jaz alguém que morreu pelas palavras. Outrossim, encaminha-se ao lugar onde repousa a verdade para que sejam tomadas as providências cabíveis".

7 comentários:

  1. Gostei do texto, e mais ainda pq não tem uma indicação imperdível como os últimos :P
    Baixei os quadrinhos, agora preciso de tempo para ler!

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  2. Pê, se eu sou o Barbosa eu entrava com recurso ..... morrer na véspera do grande show??? maldade

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  3. Que lindo! Até me deu vontade de nomear meu gato de Barbosa! Uma singela homenagem ao Emiliano Barbosa, que homem! Mas ainda vou me torturar um pouco com essa história de escolher o nome pro gato.... Bom, só posso te dizer que essa vida de funcionário público é muito inspiradora, não é? É da sua repartição que vc pariu o seu eu-lírico? hahaahaha

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    1. hahaha... digamos que sim, Carol. A Repartição é uma ostra cheia de pérolas! Eu gosto de Barbosa... hehe

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