domingo, 29 de agosto de 2010

A ti os meus desejos mais ocultos

Para me interpretar e formular-me preciso de novos sinais e articulações novas em formas que se localizem aquém e além de minha história humana. Transfiguro a realidade e então outra realidade, sonhadora e sonâmbula, me cria.
E eu inteira rolo e à medida que rolo no chão vou me acrescentando em folhas, eu, obra anônima de uma realidade anônima só justificável enquanto dura a minha vida. E depois? depois tudo o que vivi será de um pobre supérfluo.
Mas por enquanto estou no meio do que grita e pulula. E é sutil como a realidade mais intangível. Por enquanto o tempo é quanto dura um pensamento. É de uma pureza tal esse contato com o invisível núcleo da realidade.

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Sei o que estou fazendo aqui: conto os instantes que pingam e são grossos de sangue.
Sei o que estou fazendo aqui: estou improvisando.
Mas que mal tem isto? improviso como no jazz improvisam música, jazz em fúria, improviso diante da plateia.
É tão curioso ter substituído as tintas por essa coisa estranha que é a palavra.
Palavras - movo-me com cuidado entre elas que podem se tornar ameaçadoras; posso ter a liberdade de escrever o seguinte (...)
O que diz este jazz que é improviso? diz braços enovelados em pernas e as chamas subindo e eu passiva como uma carne que é devorada pelo adunco agudo de uma águia que interrompe seu voo cego. Expresso a mim e a ti os meus desejos mais ocultos e consigo com as palavras uma orgíaca beleza confusa. Estremeço de prazer por entre a novidade de usar palavras que formam intenso matagal.
Luto por conquistar mais profundamente a minha liberdade de sensação e pensamentos, sem nenhum sentido utilitário : sou sozinha, eu e minha liberdade.
É tamanha a liberdade que pode escandalizar um primitivo mas sei que não te escandalizas com a plenitude que consigo e que é sem fronteiras perceptíveis.
Esta minha capacidade de viver o que é redondo e amplo - cerco-me por plantas carnívoras e animais legendários, tudo banhado pela tosca e esquerda luz de um sexo mítico.
Vou adiante de modo intuitivo e sem procurar uma ideia: sou orgânica.
E não me indago sobre os meus motivos. - Clarice Lispector -

2 comentários:

  1. Numa sala que mais parecia um aquário, enquanto ouvia discursos mil sobre a extrema importância e responsabilidade que tinha em mãos, e do quanto estava em risco o "futuro" da empresa eu pensava nela. Pensava no tempo que estava perdendo ali, ouvindo tanta coisa que à minha vida não acrescentava em nada. Tenho em mãos tanta coisa, mas me sinto de mãos vazias (?) Chego em casa cansada, muito casada, quero ouvir algo que me deixe em paz. Então achei este video. E desde o comecinho da semana não parei mais de ouvir. Ouço incansavelmente. Então a semana passa. E chega hoje, domingo. Acordo tarde como sempre, e com a sensação de que algo falta, agora, mais do que agora, na vida. Então abro o livro Água Viva de Clarice e leio isto que de alguma forma loca e inexplicável me conforta. E este trecho: "a ti os meus desejos mais ocultos", é como se fosse pra mim. Um recado de Clarice, uma mensagem, algo mágico e apaixonante. E sinto um alivio aqui dentro, um sol nascendo, forte, livre. E lá no fundo, a imensidão "infinito" do mar. E vivo mais um domingo, revelando a ti meus desejos mais ocultos...

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  2. Se revelar e se ocultar... onde está a diferença quando só se conhece profundamente a ti mesmo? Eu te revelo cara amiga o segredo: o segredo é não haver segredo algum... Não importa se te revelas ou se te ocultas o importante é como enxerga aquele que te lê...

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